Goécia e seus múltiplos significados

Em um post anterior, já montamos uma cronologia da construção do conhecido grimório Ars Goetia, desde suas origens até sua chegada a nós.

Mas quando analisamos a Goécia em si (Goeteia em grego, Goetia em inglês ou latim, Goécia em português), vemos que este termo passou de um uso geral, se referindo a qualquer prática de magia natural, para um uso mais específico, sobre uma prática definida em um grimório dos anos ~1640.

Sendo assim, neste texto vamos falar sobre a evolução do uso deste termo, assim como seus possíveis significados dependendo do uso.

Goécia na Grécia

Tudo começa na Grécia antiga, por volta de 1000 a 500 AC, quando existiam três principais palavras para falar, sobre a prática mágica: Goeteia, Mageia e Pharmakeia. Inicialmente eram usadas de forma intercambiável, mas com o uso foram se consagrando para falar sobre a astrologia caldeia (mageia), o trabalho com ervas curativas (pharmakeia, dando origem à Farmácia) e o trabalho com espíritos da natureza ou de humanos mortos nas Eras passadas (goeteia).

Um Goes era portanto um dos Goetes, pessoas que trabalhavam com qualquer tipo de magia natural, ou especificamente com daemons. O conceito de daemon é bem diverso, como descrevemos aqui, mas de forma geral cada conceito, emoção, ou aspecto natural teria um daemon relacionado. A prática da Goécia teria efeitos conhecidos como goeteuein ou ekgoeteuein.

A etimologia de “Goécia” é contestada, pois sabe-se que existe alguma relação com o verbo “Goan” (gemer, uivar, esbravejar), mas não sabe-se exatamente o motivo. A principal hipótese seria o fato dos rituais incluírem esbravejar, mantrar, declamar ou recitar incisivamente alguns encantamentos em locais afastados no meio da natureza ou em ruínas. Mas este não seria o único tipo de ritual realizado, pois embora o uso posterior da palavra tenha se especializado, antigamente não havia distinção entre as palavras Goeteia, Mageia e Pharmakeia.

Existe uma segunda teoria, fortemente contestada em bases históricas e arqueológicas, dizendo que a Goeteia teria sido levada até a Grécia por meio de migrações dos shamans do Norte, e que seria o nome dado especificamente à forma de magia envolvendo transes xamânicos, se deixando levar pelos devires espirituais. Este tipo de transe induzido poderia ser utilizado por alguns Goetes (pois, como já mencionado, seriam quaisquer praticantes de magia de todos os tipos), mas não há nenhuma evidência para a migração de shamans do Norte da Ásia até a Grécia.

Com o tempo a Goeteia vai tendo outras formas de se fazer as práticas e vai sendo registrada em grimórios, com isso vão surgindo instruções, receitas, e formas bem específicas de se fazer cada ritual. O Heptameron é um dos primeiros grimórios (dentre os que sobreviveram até hoje) que apresenta rituais “no estilo da Goécia”, e a De Occulta Philosophia de Agrippa busca explicar as bases do funcionamento mágico.

Goécia Salomônica

Com a crescente formalização e registro das práticas, chegamos na Goécia Salomônica, que é formalizada em ~1640, e onde temos todos os instrumentos, círculos, e formas específicas para falar com o espírito dentre os 72 que são dados nessa lista do grimório.

Cabe ressaltar que 69 dentre os 72 daemons já constavam no trabalho de Wierus em 1577, e 49 destes já eram citados no Livre des Esperitz dos séculos XV ou XVI. Sendo assim, o Ars Goetia não foi uma obra criada do zero, mas sim construída a partir de obras anteriores, e padronizando o grimório por apresentar número, nome, selo, aparência, hierarquia, número de legiões e poderes regidos para todos eles.

Chama atenção neste sentido a prática do Liber Spirituum, trazida no quarto livro de filosofia oculta de (pseudo-) Agrippa e que pode ser a origem de alguns grimórios conhecidos hoje. O 4° livro de Agrippa foi publicado após sua morte, por volta de 1560, e hoje já se tem quase certeza que não foi escrito por Agrippa, mas sim atribuído a ele.

As instruções para fazer o Liber Spirituum são bem simples: colocar um livro de papel virgem na mesa com a imagem do daemon à direita, seu selo à esquerda, e uma oração chamando o daemon à frente.

Não temos como saber quantos ou quais grimórios foram construídos desta forma, convocando cada ser espiritual e anotando os resultados; porém, sabemos que a maioria das versões posteriores foi copiada de grimórios mais antigos, dado o conteúdo idêntico ou muito similar. O mais provável é que os dois processos tenham ocorrido: a confecção por cópia, e a reinterpretação com acréscimo de novos daemons. Assim, a lista de daemons teria aumentado de 49 para 69 e posteriormente para 72 daemons, sendo que o Book of Oberon inglês apresenta 88 daemons, e pode ser posterior a esta lista de 72 (ou anterior, com o acréscimo de muitos outros seres ultrapassando o Ars Goetia). Muito provavelmente, isso não ocorreu de forma linear, então também teríamos outros grimórios que são derivações desta tradição Goética que não tiveram continuidade ou novas cópias e versões.

É interessante perceber que em sua Pseudomonarchia Wierus cita um certo “Liber Officiorum Spiritum” e que a Goetia do Dr Rudd se chama “Liber Malorum Spiritum”, então estes grimórios podem ser na verdade Libri Spirituum feitos por 2 autores que entraram em contato com cada espírito ali presente, e também incluíram material de grimórios existentes.

Goécias Contemporâneas

Na época contemporânea o conceito da Goécia Salomônica começa a ser desconstruído, e surgem outras formas de Goécia como a Luciferiana, Path Work, entre outras (Satanista, Arquetípica, Simbólica Mental). Também surgem práticas de demonolatria, que não só desconstroem o conceito do que seria um demônio, inclusive voltando ao aspecto mais geral grego de daemon, como também nos ajudam a retomar a prestação de culto a estes seres.

Sendo assim, hoje convivem no meio mágico diversas concepções do termo Goeteia, Goetia ou Goécia, que são especificamente todas as leituras e releituras antigas (desde que o termo começa a ser usado em ~1000 AC até 476 DC), medievais (476 a 1453), modernas (1453 a 1789) e contemporâneas (1789 até hoje). Somam-se a isso as infinitas Goécias criadas por cada praticante ou grupo de praticantes, que podem se diferenciar pouco ou muito em relação a alguma das versões anteriores, ou podem ser consideradas Goécias no conceito grego, como qualquer tipo de ritual de magia natural.

É interessante, e até caricato, perceber que algumas vertentes de espiritismo usam o termo “goécia” como sinônimo de obsessão. Este uso do termo acaba refletindo as concepções bizantinas, com caráter político, quando por volta dos anos 1000 DC o Goes é definido como alguém especializado em “conjurar os mortos”. Mas percebe-se que estas associações são feitas propositalmente para desaconselhar a prática deste tipo de ritual e/ou para contribuir com a atmosfera de medo ao redor do termo.

E agora, como fazer? Depende.

Uma opção é utilizar as técnicas descritas por (pseudo-) Agrippa. Fazendo isso a cada página com cada espírito, você teria no final um livro consagrado para todos os espíritos que você quisesse chamar, na forma de uma lista muito parecida com o que surge depois no Ars Goetia, e também em outros grimórios.

Se você seguir a Goécia Salomônica ou Luciferiana, a prática já fica mais padronizada. Você deverá consultar os grimórios para só então interpretar e adaptar o que é descrito ali, mas deve ser entendido que mesmo a interpretação de texto já poderá mudar ligeiramente a prática, então duas pessoas podem fazer suas práticas de forma diferente, com base no mesmo grimório, chamando-as pelo mesmo nome. O que parece ser incoerente é adaptar a prática (usando velas de parafina, papel sulfite, ou túnicas de poliéster, que não existiam em 1640) e se dizer praticante de uma suposta “Goécia tradicional” ou “verdadeira Goécia”.

Se você acha interessante seguir o conceito de Goécia mais geral, original, da Grécia Antiga, qualquer ritual com magia natural, ou contactando espíritos da natureza, seria descrito como um ritual de Goécia. Estes espíritos podem ou não fazer parte de listas apresentadas em grimórios (como por exemplo o daemon pessoal).

Unindo todas essas leituras, podemos utilizar ingredientes naturais para entrar em contato com os daemons do Ars Goetia (ou de qualquer outro grimório). Assim, escolheremos os ingredientes e instrumentos por afinidade energética, levando em conta conjuntos simbólicos (4 elementos, 7 planetas, 12 signos, 22 arcanas maiores, etc) e/ou as características do daemon chamado, construindo nossa própria prática.

Referências Bibliográficas

  • DICKIE, 2003 – Magic and Magicians in the Greco-Roman World
  • FORD, 2003 – Luciferian Goetia
  • HEAT, 2012 – Waking the Dead: A Comparative Examination of Ancient Ritual Technologies for Modern Rites
  • MATHERS, 1903 – The Lesser Key of Solomon: Lemegeton Goetia
  • SKINNER e RANKINE, 2010 – A Goetia do Dr. Rudd

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